sexta-feira, 1 de junho de 2012

"Casa Drº Marques Guedes" - Alexandre Alves e Camilo Cortesão

As características do contexto de intervenção e o modo como o projecto lhes responde

A casa Drº Marques Guedes  foi projectada pelos Arquitectos Alexandre Alves Costa e Camilo Cortesão, no entanto, sempre foi um projecto sempre “vigiado” pelo Arquitecto Sérgio Fernandez. Esta habitação foi desenvolvida entre 1972 e 1974, sendo que o último foi o ano de conclusão da obra. Contudo, este projecto “cresceu” no escritório do Arq. de Sérgio Fernandez, pois fora resultado de uma encomenda feita a um amigo conhecido de Fernandez e que por indicação do mesmo foi solicitado então a Sérgio Fernandez. Deste modo, Fernandez trabalha com Alexandre Alves e Camilo Cortesão, dando assim inicio à famosa “Casa de Caminha”. Todavia, vemos que a autoria desta obra é dada a Alexandre e Camilo e não a Sérgio Fernandez, esta deve-se ao facto de o projecto ter sido maioritariamente pelos restantes intervenientes.

 “…quem de facto trabalhou mais neste projecto foi o Camilo Cortesão…foi o Alexandre e o Camilo Cortesão. De qualquer maneira fiquei ligado ao projecto, e estou ligado ao projecto, e à casa e aos senhores…e portanto…digamos, até que fui eu que assinei o projecto, como é natural, como o escritório era meu e a encomenda foi-me feita a mim. Agora, de facto, quem trabalhou mais foram eles. Por isso é que normalmente se diz ‘Alexandre Alves Costa e Camilo Cortesão’…é verdade…é 90% verdade, mas pronto, nós aqui não fazemos nada com grande distinção com isso, há muitas coisas que calha mais a um, calha mais a outro; neste caso realmente era mais a eles que a mim.”[1]

No que respeita à casa de férias em Caminha em si, sabemos que num primeiro contacto entre clientes e os devidos arquitectos, estes não tinham em mente o projecto que hoje se afirma no terreno em questão.
Deste modo, e após várias discussões com os respectivos clientes, chegaram a um projecto de habitação que ligava algumas vertentes do movimento moderno com uma grande fracção e sequência do mesmo, o brutalismo. Portanto, nesta linha de pensamento, todos os materiais foram utilizados com um reflexo de sua expressão e “agressão”.

“Pronto, tínhamos portanto três casas que eram uma espécie de referência, e que os senhores passaram a conhecer também, que era a casa do Siza do Alexandre Alves Costa, que era a casa da Gateira e que era a minha própria casa. Qualquer delas, na casa do Alexandre a estrutura de madeira, aliás a do Siza também a minha já não era, telhados..etc., e nós propusemos-lhes esta coisa, que era uma coisa muito mais ligada, se quisermos ao movimento moderno e a uma certa fracção, ou sequência do movimento moderno que era o brutalismo, que era a questão de usar os materiais na sua expressão e portanto mais agressiva, no bom sentido. E os senhores acharam isto bestial e engrenaram nisto.”[2]

“Na Casa Marques Guedes, a forma moderna sobrepõe-se à inspiração vernacular, mesmo se a relação com o sítio e com a paisagem é cuidadosa. A utilização dos materiais e o uso da geometria remetem para modelos que não são necessariamente domésticos. Apesar da implantação criteriosa e do espaço ameno, a curva de vidro, o betão aparente, e o pilar solto, remetem para uma expressão brutalista em escala demasiado sensível”[3]

No entanto, todo o projecto é quase como um surgir do terreno, sendo que este vive bastante da envolvente próxima, aproveitando-a para uma espécie de “disfarce”.

“Quase camuflada pela vegetação e topografia, escala contida e materiais (…)”[4]

Contudo, e como  já dito, a casa apresenta uma expressão bastante “diluída” e “rude” no seu exterior e ao mesmo tempo, e por outro lado observamos no seu interior uma expressão abundantemente “suave”, sendo que são todos os seus desníveis e elementos delicados que modelam todo o seu espaço “íntimo”.

A divisão do espaço por patamares e muretes remete ainda para a tradição da arquitectura moderna; são desníveis e elementos subtis que modelam o espaço, que aspira a uma totalidade”[5]

Porém, todas estes pormenores e delicadezas são conseguidos e revistos ao longo de todo o processo de construção da casa, e claro com a sucessão de projectos base que iam sendo modificados. De facto, neste período era possível intervir no projecto no momento em que este ainda se estava a construir daí o Arq. Sérgio Fernandez referir a expressão “arquitectura de bengala”, pois era possível fazer todos os ajustes necessários e dados como convenientes em prol do projecto em mãos.

“Esta casa foi feita por um senhor que ainda existe, que era um empreiteiro e é, um pequeno, pequeníssimo empreiteiro, um empreiteiro um bocado à força porque o senhor era fundamentalmente um construtor de iates, portanto um homem que dominava as carpintarias, absolutamente de uma maneira impecável…De maneira que quando os iates não começaram a não haver virou-se um pouco para a construção civil, e assim fez várias casas importantes…Fez a casa do Alexandre Alves Costa, que é do Siza; depois fez a casa da Gateira, também do Siza, depois fez a minha e fez esta também… Bom, isto tudo criava, quer dizer criou um diálogo muito rico e ensinava-nos imensa coisa, visto que as técnicas que dominava das carpintarias e maçonarias era absolutamente uma coisa fantástica, pois sempre lidou com artistas. Ainda me lembro que o Siza, aliás aqui à dois anos fizemos uma homenagem a esse senhor, e esse senhor também lá estava e o Siza lá explicou o que nós tínhamos aprendido com ele. Pronto…e isto tinha na altura, tínhamos a possibilidade, portanto de ter um diálogo muito intenso com o construtor, por outro lado a Câmara de Caminha, nessa altura era uma Câmara que nos considerava a nós; agora já não é assim; mas ter ali uns arquitectos ali a trabalhar era uma vantagem, agora já não é, antes pelo contrário é um inconveniente porque chamamos a atenção para várias coisas…mas na altura era uma vantagem, eramos muito bem tratados tínhamos muita liberdade em modificar coisas. Realmente, era possível durante a obra, uma coisa que o Siza sempre fez toda a vida e que não é enfim descabido de todo, era fazer alterações; agora torna-se impossível. Agora entrega-se um projecto e é uma desgraça. Portanto, isso foi feito muito nesse período, dai ser considerado uma obra de artesanato, porque havia possibilidade de ir vendo o resultado e etc. Nós chamávamos, a arquitectura de bengala, chegue a parede mais para ali. Não direi que foi tanto assim, porque tinha um projecto base, não tem mais que um projecto base, tem os pormenores todos e etc. Mas era possível realmente corrigir coisas assim.”[6]

Perante tal, verificamos que todo o trabalho dedicado ao projecto, tanto em atelier como em construção, faz desta casa uma real obra de artesanato como Alexandre menciona e cita.

“…é uma obra de artesanato. Artesanato com certeza na produção do projecto, como todas as outras. Mas artesanato também na produção da obra. À época da construção desta casa estarão defeitos, os equívocos nascidos de alguma leitura dos racionalistas assimilando arquitectura moderna a modernas tecnologias. Pelo contrário a ideia impõe-se de que à volta dos pequenos processos de construção das pequenas coisas, a experimentação pode saltar da prancheta para prosseguir na oficina e na obra. No ritmo próprio. Em que se apreende. Em que se projecta o móvel, o candeeiro ou a ferragem. Em que calmamente se altera ou se corrige. Em que o erro de interpretação de um desenho pode ser momento de colocar outras questões. Oposta a uma qualquer ordem monumental, nesta casa de praia destrói-se sistematicamente qualquer resíduo de grandiloquência clássica, estremando posições até a reduzir a um decomposto e sincero envólucro de paredes de um espaço rico em sugestões vivenciais de relação”[7] e [8]
 
Assim, esta casa cumpre o termo de funcionalista, mas no sentido de “alegria experimental e não de gesto de funcionário”[9]

Desta forma, o projecto da habitação esta efectivamente pensado e destinado à nossa medida, “mínimo mas comunicante, aberto mas criando a noção de abrigo”[10].

 
A lógica funcional e espacial da planta que melhor representa o projecto
 
 [11]

Como em tudo que se contornava em torno deste projecto, o programa (planta) também foi alvo de delicadeza e simplicidade, desta forma este também se revelou muito simples. 
Quanto a sua localização, o projecto situa-se numa encosta, como resultado dessa topografia a habitação é orientada a norte. Visto que a sul a proposta não iria beneficiar de paisagem. Assim, a decisão foi feita através da topografia apresentada, e do melhor partido que o projecto poderia tirar desta. Visto ser uma casa de habitação relativamente temporária e preferencialmente no verão a sua exposição solar não fica prejudicada.     

"Quase camuflada pela vegetação e topografia, escala contida e materiais - entramos à cota alta numa espécie de cabana em angulo recto de pedra e betão, que no interior revela uma «paisagem» modernista."[12]

Como já foi referido anteriormente a casa tem um programa muito simples e funcional, dando assim origem a um ambiente muito confortável. O seu programa é composto por uma sala em comum com a cozinha e uma pequena galeria. Esta com um nível elevado de acesso através de uns pequenos degraus. Três quarto, sendo o seu desnível em comum pontuado entre eles por dois degraus. Duas casas de banho, uma comum enquanto a outra de serviço a um dos quartos (donos). Uma lavandaria e uma despensa. Quanto ao acabamento de interior as paredes e tecto eram pintadas com um rosa pálido e o pavimento em cerâmica.    
  
"A casa tinha um programa muito simples, uma casa de férias, são três quartos, uma casa-de-banho comum, uma casa-de-banho mais ligada a um quarto (o quarto dos senhores portanto) e depois eles queriam; portanto o senhor é médico e tem uma colecção de discos, tinha a mania da música, quer dizer a saudável mania da música, da música boa, portanto coleccionada discos e não só; tinha aparelhagens absolutamente fantásticas, digo tinham por acho que ele já não tem tanto isso lá, mas…E portanto queria ter um local de trabalho e que pudesse estar a ter uma continuidade de espaço, com algumas marcações de espaço, mas que tivesse toda a casa uma continuidade de vivência.” [13]

"No interior, o mobiliário modela o espaço como num apartamento da Unité, espaço medido, ajustado pela bancada da cozinha, pela mesa e cadeiras, pelo armário-murete e coluna-chaminé. A cozinha é um armário aberto, os electrodomésticos significam funcionalidade e conforto, a sala segue-se no open space, o tecto acompanha o declive do terreno na direcção da paisagem. As famosas "alcovas" são ainda um armário para dormir, o mobiliário dita o espaço."[14]
"Acede-se á Casa Marques Guedes a uma cota alta, dai entrando-se na sala que está num patamar inferior, em open space com a cozinha. A divisão do espaço por patamares e muretes remete ainda para a tradição da arquitectura moderna; são desníveis e elementos subtis que modelam o espaço, que aspira a uma totalidade.
A integridade formal da casa é conseguida pelo desenho de todos os elementos arquitectónicos - mobiliário, iluminação, caixilharia -, dada a escassez de opções, na época, existentes na industria de construção civil. Este facto dá à Casa Marques Guedes um caracter experimental.

Mesmo se a organização do espaço é feita com recurso à tradição moderna, uma certa experimentação e desagregação exterior remete já para o terreno da dúvida."[15]


Os aspectos do projecto mais próximos dos modelos canónicos do movimento moderno;
Os aspectos do projecto que mais se distanciam dos modelos canónicos do movimento moderno

“A Casa de Caminha é a última casa moderna construída em Portugal.”[16]

“Quase camuflada pela vegetação e topografia, escala contida e materiais – entramos à cota alta numa espécie de cabana em ângulo recto de pedra e betão, que no interior revela uma “paisagem” modernista.”[17]

Casa Marques Guedes revê-se claramente no movimento Moderno. Além de se encontrar ligada a uma pendente do mesmo, o brutalismo, sendo detentora de um tratamento informal e rudimentar dos materiais no exterior, o projecto revela diversas características do funcionalismo, sendo “funcionalismo” aqui utilizado  como “alegria experimental” e não gesto de funcionário. De certa forma, “o mobiliário modela o espaço”, a funcionalidade e o conforto “modelam” a habitação, muito à imagem de um apartamento Unité, sem esquecer do emprego do open space, o que confere ao interior um semelhante consideravelmente modernista.

“O espaço parece destinado à nossa medida, mínimo mas comunicante, aberto mas criando a noção de abrigo. Talvez seja o fantasma de Modulor, que Sérgio usava no atelier de Viana de Lima, a funcionar. Talvez o maior legado de Le Corbusier seja afinal este, que aqui podemos pressentir: uma precisão espacial que emociona, a pequena escala correcta; a medida do corpo humano revertida na medida da Casa que o Cabanon (1951) exemplifica de modo extremo.”[18]

Em certa medida que a Casa de Marques Guedes segue o percurso de Le Corbusier: desde “a plasticidade cubista dos anos vinte”, no que remete ao interior da habitação, ao “jogo cru dos anos cinquenta”, no exterior, resolvendo alguns dos mais marcantes problemas do Modernismo: “os problemas da falta de domesticidade e de “decoro” da arquitectura”.
“A arquitectura portuguesa não volta a ter este convencimento ou precisão ou candura.”[19]

 

[1] Arq. Sérgio Fernandez (Mariana Soares e Paula Barros). Porto:27/04/2012
[2] Arq. Sérgio Fernandez (Mariana Soares e Paula Barros). Porto:27/04/2012
[3] FERREIRA, Jorge Manuel Fernandes Figueira (2009).  A Periferia Perfeita: Pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa, Anoa 60-Anos 80. Dissertação  de Doutoramento  em Arquitectura. Departamento de Arquitectura. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Volume I. p.358
[4] FIGUEIRA,  Jorge. O Arquitecto Azul. p.115
[5] FERREIRA, Jorge Manuel Fernandes Figueira (2009).  A Periferia Perfeita: Pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa, Anoa 60-Anos 80. Dissertação  de Doutoramento  em Arquitectura. Departamento de Arquitectura. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Volume I. p.358
[6] Arq. Sérgio Fernandez (Mariana Soares e Paula Barros). Porto:27/04/2012
[7] FERNANDEZ, Sérgio. Percurso, Arquitectura  Portuguesa  1930-1974, 2ªed. Porto: FAUP, 1988, pp. 190-191
[8] COSTA, Alexandre Alves, Dissertação expressamente elaborada para o concurso de habilitação para obtenção de título de Professor…memórias do cárcere desastres de Sofia ou memórias de um burro. Porto : Edições do curso de Arquitectura da ESBAP, 1982 (1ºedição do autor,1980), pp. 97-98
[9] FIGUEIRA,  Jorge. O Arquitecto Azul. p.115
[10] FIGUEIRA,  Jorge. O Arquitecto Azul. p.115
[11] Planta Casa Dr. Marques Guedes, Abril 1972. Projecto Original. (fornecida por Arq. Sérgio Fernandez, em 27.04.2012)
[12] FIGUEIRA,  Jorge. O Arquitecto Azul. p.115
[13]Arq. Sérgio Fernandez (Mariana Soares e Paula Barros). Porto:27/04/2012
[14] FIGUEIRA,  Jorge. O Arquitecto Azul. p.115
[15] FERREIRA, Jorge Manuel Fernandes Figueira (2009).  A Periferia Perfeita: Pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa, Anoa 60-Anos 80. Dissertação  de Doutoramento  em Arquitectura. Departamento de Arquitectura. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Volume I. pp.358-359
[16] FIGUEIRA,  Jorge. O Arquitecto Azul. p.115
[17] FIGUEIRA,  Jorge. O Arquitecto Azul. p.115
[18] FIGUEIRA,  Jorge. O Arquitecto Azul. p.115
[19] FIGUEIRA,  Jorge. O Arquitecto Azul. p.117




   Bibliografia:

COSTA, Alexandre Alves, Dissertação expressamente elaborada para o concurso de habilitação para obtenção de título de Professor…memórias do cárcere desastres de Sofia ou memórias de um burro. Porto : Edições do curso de Arquitectura da ESBAP, 1982 (1ºedição do autor,1980)

FERNANDEZ, Sérgio. Percurso, Arquitectura  Portuguesa  1930-1974, 2ªed. Porto: FAUP, 1988

FERREIRA, Jorge Manuel Fernandes Figueira (2009).  A Periferia Perfeita: Pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa, Anoa 60-Anos 80. Dissertação  de Doutoramento  em Arquitectura. Departamento de Arquitectura. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Volume I

FIGUEIRA,  Jorge. O Arquitecto Azul.

PORTAS, Nuno; MENDES, Manuel, “A.Alves Costa, C. Cortesão, Maison de vacances, Caminha-Portela, 1973-1974”, in Portugal Architecture 1965-1990, Paris: Editions du Moniteur, 1992 [Milan:Electa,1991]

Entrevista a Arq. Sérgio Fernandez (por Mariana Soares e Paula Barros) em 27.04.12

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